sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Mais de 70 por cento dos idosos são vítimas de maus-tratos

Estudo preliminar feito na cidade de Braga por investigadores da UM

O abuso contra as pessoas idosas atinge valores preocupantes, apesar da falta de visibilidade pública do problema e de haver poucas investigações em Portugal sobre o assunto. Um estudo preliminar feito em 2006, na cidade de Braga, mostra que 73 por cento dos idosos da amostra apresentavam pelo menos um indicador de abusos. Braga, Vieira do Minho e Coimbra são as três localidades onde arrancam as unidades de atendimento psicológico gratuito para pessoas com mais de 65 anos que se julguem vítimas de algum tipo de maus-tratos e negligência. (Reportagem publicada no Diário do Minho, a 2 de Dezembro de 2008)






Maria (nome fictício) tem 91 anos e vive infeliz num lar do Norte do país. Esta senhora sonha com uma «casinha pequenina» nas traseiras da habitação de um dos filhos, onde pudesse ficar «arrumadinha» no seu «cantinho». O seu sonho é voltar a ter a casa que um dia já possuiu, mas que os filhos venderam sem autorização. «Eu tinha uma casinha só minha lá na terra onde sempre vivi, onde criei os meus filhos e onde tenho todas as minhas amigas. Mas os meus filhos venderam-na sem eu saber....», conta.

A idosa foi visitar a irmã e por lá ficou uns dias. «Quando cheguei à minha casa vi-a toda fechada e comecei a chorar porque percebi aquilo que tinha acontecido... Eles venderam-me tudo e o que não venderam deram aos vizinhos. Venderam a casa e nunca vi tostão da venda. A casa era minha, eu é que tinha direito ao dinheiro da venda», afirma.

Maria foi a um lar ver um doente e foi naquele momento que ficou a saber que ia permanecer na instituição. «Enquanto estava lá com o doente, eles deviam ter estado a acertar os preços. Só sei que quando saí eles disseram-me que ia ficar aqui. Eles já tinham a minha mala pronta; já estava tudo tratado e a única que não sabia de nada era eu... Nem me perguntaram se queria vir para aqui ou não», explica.

As opiniões de Maria não são tidas em conta, mesmo nas decisões que afectam a sua vida. «Quando vim para o lar fiquei nem sei explicar como. Fiquei perdida, muito triste. Fiquei com aquela ideia de que uma pessoa passa uma vida a educar os filhos e a dar-lhes tudo de bom .... E quando vai para velha está sujeita a andar ao mando deles. Agora eles é que sabem tudo... Fazem as coisas nas minhas costas, trazem-me para um sítio que eu nem sabia, eu vim para aqui na inocência. Se fosse mais nova, ninguém passava por cima de mim», sustenta.

O testemunho desta senhora foi ouvido em 2004, constando do artigo “Factores de risco e indicadores de abuso e negligência de idosos”, da autoria do coordenador do Grupo de Estudos e Avaliação das Pessoas Idosas Vítimas de Maus-Tratos (GEAVI), representante português na International Network for the Prevention of Elder Abuse (INPEA) e professor da Escola de Psicologia da Universidade do Minho (UM), José Ferreira-Alves, no qual é sublinhada a importância de olhar com mais atenção para o fenómeno de abuso e negligência dos seniores.

No trabalho “Avaliação do abuso e negligência de pessoas idosas: contributos para a sistematização de uma visão forense dos maus-tratos”, este investigador destaca que «os maus-tratos e a negligência aos idosos serão um dos problemas de saúde pública onde será mais certo um aumento nas próximas décadas. É importante que a sociedade portuguesa se possa preparar para responder a este novo problema social, que parece não estar associado apenas a certos estratos da população, mas, antes, disseminado por todo o tecido social».

Negligência e abuso emocional são mais prevalentes


Um estudo preliminar realizado por José Ferreira-Alves e Mónica Sousa, em 2006, na cidade de Braga, mostra que 73 por cento dos idosos da amostra apresentavam pelo menos um indicador de abuso. Por “abuso” pode ser entendido «qualquer acto, voluntário ou involuntário, que provoque dor ou sofrimento na pessoa idosa ou que atente contra o seu bem-estar, violando os seus direitos enquanto ser humano», podendo ser infligido «pelos seus cuidadores, familiares, profissionais de instituições ou mesmo estranhos». No caso dos idosos, os abusos podem ser emocionais ou psicológicos, físicos, sexuais, exploração material ou financeira, abandono, negligência e auto-negligência».

A investigação incidiu sobre 82 pessoas, com idades entre os 63 e os 88 anos, que frequentam um centro de dia. Os investigadores chegaram à conclusão que cerca de 27 por cento dos inquiridos não apresentam qualquer indicador de abuso. Em relação aos 73 por cento que apresentam indícios de abuso, 28 por cento revelam um, 11 por cento dois, também 11 por cento três, 5 por cento quatro, igualmente 5 por cento cinco, 1,2 por cento seis, 7,3 por cento sete, 3,7 por cento oito e 1,2 por cento todos as possibilidade de abusos.

No artigo “Indicadores de maus-tratos a pessoas idosas na cidade de Braga”, José Ferreira-Alves e Mónica Sousa referem que o abuso mais apontado é a negligência (53,7 por cento), seguindo-se o abuso emocional (52,4 por cento), abuso financeiro (19,5 por cento) e abuso físico (12,2 por cento).

O estudo mostra que quanto pior é a percepção que as pessoas têm do seu estado de saúde maior é o número de indícios de abuso, nomeadamente abuso físico, emocional e negligência. Da mesma forma, quanto mais velhas as pessoas são mais indícios há de abusos físicos e emocionais. Já as mulheres sofrem mais negligência do que os homens. A partir destes dados, os investigadores da UM referem que «parecem estar em maior risco de abuso as pessoas com mais idade, do sexo feminino e com percepção de má saúde».

[Foto Arquivo Diário do Minho]

Idosos sentem-se discriminados

A maior parte dos idosos sentem-se discriminados, sobretudo em interacções com profissionais de saúde e noutros contextos interpessoais em que os interlocutores supõem a priori que a pessoa com mais idade já não ouve bem ou não compreende bem.

Esta é uma das conclusões de um estudo levado a cabo por José Ferreira-Alves e Rosa Ferreira Novo, envolvendo 324 participantes, com idades entre os 60 e os 94 anos, residentes em diversas localidades dos distritos de Braga, Porto e Lisboa, alguns em instituições e outros integrados, em condições normais, na sociedade. A investigação visou perceber que percepção é que a população sénior tem da ocorrência de episódios de discriminação.

Dos 324 participantes, 68 por cento referem ter sido alvo de um ou mais tipos de episódios reveladores de discriminação relativamente à sua idade, sendo ainda elevadas as percentagens de participantes que referem ter vivenciado mais de três (38 por cento) e de cinco (14 por cento) tipos diferentes de discriminação. A percepção de discriminação em contextos de saúde é o item que obtém mais respostas, seguindo-se a assunção de surdez ou de falta de capacidade de compreensão.

Perante estes dados, apresentados no trabalho “Avaliação da discriminação social de pessoas idosas em Portugal”, os investigadores referem que «a semelhança numérica de ocorrências percebidas pelas pessoas idosas, no contacto com profissionais de saúde e com outras pessoas que supõem a priori que elas já não ouvem bem ou não compreendem bem, é sugestiva de como, não obstante a sua formação científica, os profissionais de saúde podem revelar a mesma ou maior dose de estereótipos que as pessoas comuns».

Os resultados sugerem que «a discriminação com base na idade avançada, terá supremacia relativamente à discriminação com base no género e na escolaridade». «É como se na nossa cultura o avanço da idade “apagasse”, de alguma maneira, o próprio género (“não há homens idosos ou mulheres idosas, apenas idosos!”) e os eventuais benefícios da escolaridade (não há pessoas idosas com mais ou menos escolaridade, há apenas idosos!). Este reducionismo centrado na idade (na velhice) acompanha a desvalorização da individualidade, o que é humanamente empobrecedor e culturalmente perigoso», alertam.

«De um ponto de vista científico, não há motivo para atribuir ao avanço da idade aquilo que as práticas discriminatórias sempre supõem: menor capacidade, competência ou dignidade. E, por isso, os resultados obtidos apontam para a necessidade de uma intervenção cultural lata da parte da comunidade científica no sentido de esclarecer, sempre que possível, os complexos puzzles de relações encontrados entre envelhecimento e saúde, envelhecimento e doença, envelhecimento e competência», vincam José Ferreira-Alves e Rosa Ferreira Novo.

Número de atendimentos cresceu 20% de 2006 para 2007

APAV recebeu 309 idosos no primeiro semestre deste ano

O número de idosos que recorrem à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tem vindo a aumentar, sendo os maus-tratos psíquicos uma das queixas mais frequentes.

As estatísticas desta organização relativas aos idosos vítimas de crime revelam que se verificou um aumento de 20,4 por cento de 2006 para 2007 no número de atendimentos.

Entre 2000 e 2007, a APAV recebeu 3.459 pessoas idosas vítimas de crime, tendo sido atendidas 290 em 2000, 387 em 2001, 455 em 2002, 396 em 2003, 384 em 2004, 346 em 2005, 545 em 2006 e 656 em 2007.

Relativamente ao número de crimes praticados contra pessoas idosas, entre 2006 e 2007 verificou-se um aumento na ordem dos 15,6 por cento, tendo passado de 1.077 para 1.245 crimes. Entre 2000 e 2007, a APAV registou um total de 7.059 crimes.

O Gabinete de Braga atendeu no ano passado 30 idosos (11,9 por cento do total de vítimas), sendo 26 do sexo feminino e quatro do sexo masculino.

Os dados relativos ao primeiro semestre de 2008 revelam que já foram atendidos em todo o país 309 idosos, que representam 8,4 por cento das vítimas que pediram ajuda. Entre as vítimas de violência doméstica atendidas nos primeiros seis meses do ano, 268 têm 65 ou mais anos (224 mulheres e 44 homens).

Ponta do “iceberg”

O Grupo de Estudos e Avaliação das Pessoas Idosas Vítimas de Maus-Tratos (GEAVI) sublinha que os dados existentes são «a ponta do iceberg» deste problema. Nas palavras de José Ferreira Alves e Mónica Sousa, os maus-tratos a idosos têm sido um fenómeno «excessivamente ignorado, tanto do ponto de vista da sua investigação e identificação como da sua prevenção e modos de intervenção».

«Pelo facto do abuso contra pessoas idosas ser um assunto sub-referenciado, em particular pelas próprias vítimas, que temem as consequências da sua denúncia, estima-se que os dados disponíveis sejam apenas a ponta do iceberg», sublinham os membros do GEAVI.

Os investigadores referem que «o abuso contra idosos é uma das problemáticas menos visíveis, sendo, porventura, um dos fenómenos que mais pessoas e recursos envolve, devido às consequências que apresenta. Em 2002, a Organização Mundial de Saúde alertou para o facto de cerca de 4 a 6 por cento dos idosos que vivem em casa serem vítimas de abuso».

Os especialistas frisam que «o fenómeno do abuso apresenta uma importância impossível de ser negligenciada pelas sociedades contemporâneas», uma vez que se verifica «um acentuado envelhecimento da população resultante da diminuição da natalidade e do aumento da esperança média de vida. Este fenómeno, aliado a uma idade de reforma tendencialmente mais tardia, tem vindo a conduzir alterações no papel/estatuto da pessoa idosa, que originam novos desafios sociais».

Os membros deste grupo salienta que «é necessário que se preste atenção a alguns dos factores que podem aumentar a probabilidade de ocorrência de abuso e a possibilidade se detectar», tais como «o isolamento social, a dependência (entre agressores e vítimas), o stress do cuidador, a presença de psicopatologia e alguns factores de personalidade, o consumo de substâncias, a transmissão intergeracional de violência, os estereótipos em relação ao envelhecimento e o ambiente sociocultural».

Serviço de atendimento psicológico para idosos vítimas de maus-tratos

Braga, Vieira do Minho e Coimbra são as localidades com as primeiras unidades de atendimento psicológico gratuito para pessoas com mais de 65 anos que se julguem vítimas de algum tipo de maus-tratos e negligência. A consulta visa apoiar a pessoa, capacitando-a o mais possível para lidar com a situação ou/e, se necessário, reencaminhá-la para algum dos serviços sociais ou médicos existentes, de acordo com a sua vontade.

O coordenador do Grupo de Estudos e Avaliação das Pessoas Idosas Vítimas de Maus-Tratos (GEAVI) e representante português na International Network for the Prevention of Elder Abuse (INPEA), José Ferreira-Alves, explica que estão a ser realizados esforços no sentido de se criarem unidades de consulta psicológica especificamente dirigidas a pessoas idosas vítimas de maus-tratos em várias localidades.

Este trabalho procura «envolver uma vasta equipa de profissionais, não tendo a pretensão de se sobrepor ao trabalho pioneiro desenvolvido pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) ou outras instituições, mas, pelo contrário, complementá-lo e acentuar a vertente da investigação e da formação específica de profissionais para este tipo de atendimento». Os promotores querem aproveitar estas estruturas para «investigar este tipo de ocorrências para testar formas de atendimento e de ajuda adequadas a estas pessoas».

Os idosos merecem, actualmente, a atenção do Programa Apoio 65 e das Equipas de Proximidade e de Apoio à Vítima (EPAV) da PSP, do Núcleo da Mulher e do Menor (NMUME) da GNR, da Linha do Cidadão Idoso (800203531), da Linha Nacional de Emergência Social (144) da Segurança Social e da APAV.

Os novos serviços podem ser contactadas através do Serviço de Consulta Psicológica da Universidade do Minho (José Ferreira-Alves), da Unidade de Cuidados continuados de Vieira do Minho (Tito Peixoto) e da Consulta Memórias da Universidade de Coimbra (Margarida P. Lima).