domingo, 4 de janeiro de 2009

Televisão pode estar a estrangular o espaço público

Felisbela Lopes lança livro “A TV do Real”

“A TV do Real - A Televisão e o Espaço Público” é o título do novo livro da professora da Universidade do Minho Felisbela Lopes. A investigadora do Departamento de Ciências da Comunicação concebe a televisão como um “mapa” que cria itinerários principais e delimita estradas secundárias no espaço público. A especialista considera que a televisão pode estar a estrangular o espaço público, na medida em que trata um número limitado de temas, próximos dos interesses das elites, dá voz a conjunto restrito de pessoas e não estimula a participação dos telespectadores. Numa altura em que as novas tecnologias abrem novas possibilidades à participação, a docente sublinha a importância da educação para os “media” e a constante vigilância em relação ao que passa no pequeno ecrã. (Entrevista publicada no Diário do Minho, a 25 de Dezembro de 2008)


Que lugar é que a televisão ocupa nas nossas vidas?
A televisão tem um lugar importante no nosso quotidiano. Até mesmo nas nossas casas, ocupa um lugar central. Na vida simbólica, também acaba por ser estruturante de diversos campos sociais. No campo político, a televisão tem uma grande força, ditando comportamentos ou condicionando decisões. Podemos replicar essa força a áreas como a justiça, a saúde, a cultura, a educação, o desporto ou a economia. Hoje, dificilmente podemos pensar os diferentes campos sociais sem introduzir aí a influência da informação televisiva.

No livro “A TV do Real” introduz o conceito de “mapa” para falar da televisão…
Durante algum tempo, concebemos a televisão como uma janela. Essa será uma concepção de televisão característica dos tempos do monopólio, podendo até ser identificada com regimes totalitários. A televisão era uma espécie de janela que se abria e para onde se apontavam as realidades que o poder político dominante queria que os espectadores vissem e absorvessem.

Com a desregulamentação televisiva, ou seja, com a privatização da TV, passou-se a pensar a televisão enquanto espelho. Olhava-se a televisão como se fosse um ecrã que reflectia a vida de todos os dias do cidadão comum.

Mas nunca se poderá falar dos meios de comunicação em geral, e da televisão em particular, como um espelho, porque os media não integram todo o real e o real que comportam pode não reflectir aquilo que nós somos e os campos sociais que se pretende retratar.

Essa metáfora do espelho é enviesada, porque a televisão não absorve toda a realidade e nem tudo o que lá vemos existe com aquela forma. A televisão cria um real. Daí o título deste meu livro, porque há uma televisão do real e um real que é próprio da televisão.

A melhor maneira de falar da televisão é enquanto mapa, um mapa criador de uma certa geografia social. A televisão cria itinerários principais e delimita estradas secundárias no espaço público. Olhando para a informação televisiva, percebe-se que há a criação de itinerários principais que podem não corresponder ao que é estruturante da vida de todos os dias. A força das imagens e do discurso televisivos cria o tal real.

O que as pessoas percepcionam como importante é o que passa na televisão?
A televisão condiciona as nossas percepções sociais em relação àquilo que pensamos ser o mais importante. Daí que seja imprescindível reflectirmos e fazermos um escrutínio em permanência do que vemos no pequeno ecrã.

Este livro não se destina apenas aos estudiosos da comunicação, mas também a todos nós enquanto cidadãos que querem exercer uma cidadania activa. A televisão exige que perguntemos sempre se aquilo que estamos a ver corresponde ao mais importante e se as pessoas que são chamadas a falar sobre determinado assunto são as mais habilitadas para isso.

O que por vezes acontece é que as pessoas a quem é dada a palavra sobre determinado assunto não são as mais habilitadas, mas as que falam ao ritmo da televisão, as que estão na agenda dos jornalistas e as mais próximas das redacções centrais.

Por isso, a televisão pode não contribuir para a vitalidade do espaço público. Pode até, pelo contrário, estrangulá-lo. Ao confinar-se a uma agenda muito estreita e a um grupo muito restrito de pessoas, a informação televisiva pode estreitar o espaço público.
Que papel é reservado para o cidadão comum?
Normalmente, o cidadão comum faz parte das notícias enquanto vítima ou enquanto actor de alguma história curiosa, engraçada, singular, mas quase nunca é chamado a discutir ideias. O cidadão comum tem acesso ao espaço televisivo pelas margens. Quase nunca é colocado no centro do debate político ou interpelado sobre determinadas matérias. E, quando isso acontece, recorre-se à “vox populi”, que é um amontoado de opiniões coladas umas às outras, sem preocupações de maior com a identidade de quem fala…

A televisão importa-se com o público?
Apesar de se dirigir a todos, actualmente a televisão do real importa-se muito pouco com os telespectadores. Tem havido algumas experiências pontuais de participação que são interessantes, como a que acontece na RTPN no programa “ À Noite as Notícias”. Criou-se aí um blogue onde diariamente é colocada uma pergunta, pedindo-se às pessoas que opinem sobre o assunto em discussão. As opiniões editadas no blogue são, à noite, apresentadas em antena. A participação dos telespectadores não fica na margem, mas faz parte do alinhamento do noticiário. Esta é uma experiência que poderia ser alargada a outros programas.

A TV do real poderia criar um itinerário principal através do cruzamento da Internet com a televisão, que poderia desencadear outro tipo de participação. Mais activa e mais diversificada. Rubricas como aquelas que são ensaiadas no “Jornal da Noite” da SIC, em que pedem aos telespectadores vídeos das férias ou das tradições do Natal, teriam algum interesse se fizessem parte de um leque variado de participação do cidadão comum. Não é o caso. Com a excepção desse tipo de iniciativas e do programa do Provedor do Telespectador da RTP, as audiências televisivas estão condenadas a um consumo muito passivo da TV.

Mas essa é uma limitação que não é apenas da televisão, mas do jornalismo na sua globalidade. Os jornalistas não têm aberto canais de diálogo permanente com os telespectadores, leitores ou ouvintes. Os espaços de participação, quando existem, acabam por ser unidireccionais. Disponibiliza-se um endereço de correio electrónico, mas depois não se dialoga com quem escreve. Não há uma vitalidade desencadeada pelas novas tecnologias.

Os telespectadores também não têm sido pró-activos...
Há uma cidadania de baixa intensidade, que, às vezes, pouco se importa em discutir aquilo que constitui o espaço público mediático. No caso da televisão, talvez porque o próprio meio é ainda opaco para muita gente. Ainda continuamos a relacionarmo-nos com o pequeno ecrã, dizendo frases como: “É verdade, porque vi na televisão”. Não temos uma perspectiva crítica. Por exemplo, pensar se a peça que abriu o telejornal é a mais significativa entre as que estão no alinhamento, se a pessoa chamada a estúdio corresponde ao protagonista do dia...

Falta-nos uma certa educação para os “media”, mesmo ao nível dos mais novos que tanto lidam com ecrãs, sobretudo de computadores. Ainda temos uma perspectiva passiva em relação àquilo que vemos.

Os canais televisivos também se têm mostrado desinteressados em estimular o lado crítico dos cidadãos. Às vezes temem-se críticas aos erros que se vão cometendo no dia-a-dia… Eu não acho que fosse negativo. Isso iria contribuir para termos uma informação, com mais qualidade. Era importante que os jornalistas ouvissem e percebessem o que as pessoas pensam daquilo que eles fazem. As audiências, enquanto números, podem ser indicadores muito falaciosos do tipo de recepção que é feita.

Falta capacidade de arriscar?
Falta. Os jornalistas têm muito medo de inovar, de arriscar fazer diferente, não percebendo que a inovação pode trazer mais qualidade e enriquecer o trabalho que fazem. Os juízos que os jornalistas fazem daquilo que importa conhecer estão muito mais próximos das elites do que do telespectador comum.

Os jornalistas falam mais com o poder dominante e tendem a estabelecer uma selecção noticiosa que coloca essas peças no topo, esquecendo-se que as elites correspondem a uma minoria.

As redacções até podem perceber que aquilo que fazem não corresponde àquilo que importaria mostrar, mas não ousam sair de uma lógica circular de informação. Assim, os canais de TV acabam por ser caixas de ressonância dos vários poderes, replicando-se também uns aos outros. Os editores dos noticiários fazem em permanência uma antecipação daquilo que vai fazer a concorrência. É por isso que todos dão mais do mesmo. Ainda que isso não corresponda ao que interessa ver.
Há condicionalismos que justificam a replicação do mesmo modelo?
Poderá haver. O poder político é um dos condicionalismos, pois exerce uma pressão muito grande sobre os jornalistas. E não estou a falar apenas do Governo, mas de todos os partidos. Quando os políticos criticam os jornalistas, quase sempre o fazem para se queixarem da cobertura dos seus próprios partidos. É muito preocupante quando vemos que os nossos representantes não zelam pelo bem comum. Não se vêem deputados a queixarem-se de que as televisões fazem uma má cobertura da ciência, da cultura ou que o cidadão não está no centro do debate público. Os políticos, desde o Bloco de Esquerda ao PP, olham para os jornalistas como se eles tivessem como função estrutural do seu trabalho a mediatização daquilo que eles fazem. Por outro lado, os políticos têm assessores muito eficazes e que pressionam de diversas formas.

Que outros condicionalismos é que há?
O condicionalismo económico. As receitas publicitárias são um condicionalismo poderosíssimo. As televisões estão todas a fazer produtos para o mesmo público-alvo. Há muito medo de fazer diferente e de ficar na periferia.

Outro condicionalismo tem a ver com a organização das empresas de televisão. Todas elas têm a sede em Lisboa e apostam cada vez menos em delegações, o que significa que há menos pontos de vigia. Como a dificuldade de mandar jornalistas a partir de Lisboa ou do Porto é grande, o resto do país fica menos visível. Isso contribui decisivamente para o estreitamento do espaço público televisivo. O chamado “resto do país” tende a ter cada vez mais dificuldade em se impor enquanto detentor de uma voz crítica e activa nos programas de informação.

Não é paradoxal que se dê um estreitamento do espaço público numa altura em que as novas tecnologias facilitam a participação?
É uma situação perniciosa e que pode acarretar alguns perigos. Estamos convencidos de que a evolução tecnológica nos dá meios de participação muito activos, mas o que é facto é que a televisão ainda continua a ser muito central e essa centralidade tem cada vez menos pontos de diálogo com o país.

A TVI é feita exclusivamente em Lisboa, quando já teve capacidade de emissão de um noticiário fora da capital. O mesmo se passa com a SIC e a SIC Notícias. Temos o Porto Canal que será mais um canal regional… com potencialidades, embora nem sempre com a situação financeira mais confortável. Resta a RTP. O “Jornal da Tarde” do canal público não teria as mesmas peças se fosse feito a partir de Lisboa. Sendo feito a partir do Norte e integrando um alinhamento que atende a realidades regionais, isso obriga as outras estações televisivas a estarem atentas porque têm um concorrente forte e com audiência. Tudo isto se perde à noite, com as emissões centralizadas em Lisboa.

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