Paula Braga perdeu um filho aos cinco meses de gestação
Paula Braga afaga a barriga onde Benedita se desenvolve. O sorriso aberto com que acaricia o abdómen contrasta com o olhar turvo com que momentos antes tinha falado da perda de um filho, quando tinha cinco meses de gestação. «Eu perdi um filho, uma vida humana. E se há uma vida é para ser amada», afirma.
Há cerca de dois anos, com uma gravidez absolutamente normal, Paula estava em casa quando começou a sangrar. Foi às urgências e disseram-lhe que não tinha líquido amniótico. A autópsia revelou que o bebé tinha uma má formação nos rins, que não produzia líquido amniótico.
O bebé ainda não tinha nome porque o casal não sabia o sexo, mas já havia uma escolha feita para o caso de ser menino e outra para o caso de ser menina. Mas há situações em que a criança já tem nome e o parto até está marcado. «Temos associadas que perderam filhos quando eles tinham 15 dias, mas também há uma, por exemplo, que perdeu-o a uma semana do parto», refere a psicóloga Sandra Cunha.
Esta especialista salienta que não há uma relação entre o tempo de gestação e a dor que as mulheres sentem. «Há factores externos que não o tempo de gravidez que vão influenciar a forma como o luto é vivenciado», explica. Uma senhora chegou há Artémis porque ainda não esqueceu a morte do filho, há 27 anos.
A angústia, o sentimento de culpa e a depressão são elementos comuns às mamãs que procuram a associação, embora sejam vividos de forma diferente. «Eu sentia-me incompreendida. As pessoas não falavam a mesma linguagem que eu. Tinha-me morrido um filho e toda a gente achava natural e dizia que não fazia mal porque eu era nova e ia ter mais crianças. E este? Ninguém diz a uma mãe que perdeu um filho: “deixa lá porque tens outro”», afirma Paula Braga.
Em casa, o marido meteu as roupinhas e os brinquedos em caixas e enfiou-as num armário. «Quando uma mulher sabe que está grávida, pensa logo em comprar coisinhas para o bebé. Eu já tinha imensas coisas para o meu filho, que ficaram em caixas, no armário. Sempre que olhava para elas, fugia», conta.
Entre o silêncio e a vontade de falar
O dia-a-dia de Paula passou a ser marcado pelo silêncio forçado. «Eu queria falar com o meu marido, mas ele fugia do assunto porque não me queria magoar. Ele achava que se falasse disso, eu ia estar sempre a pensar no mesmo e a sofrer. Ele também sofreu porque guardou tudo. É importante que os homens falem», diz.
Neste caso, a perda acabou por unir ainda mais o casal, mas em muitas situações a realidade é bem diferente. «Muitas vezes acaba por existir uma lacuna ao nível da comunicação. Os maridos preferem não falar do assunto e assim começa o afastamento. Se este problema não for trabalhado, pode levar a situações muito mais graves. Por isso, trabalhamos também com os maridos e até com os filhos», refere Sandra Cunha.
O silencio é extensivo à família alargada. «Nas reuniões de família não se fala disso, talvez porque as pessoas tenham medo de nos magoar ainda mais. Mas eu sentia necessidade de falar. O Dia da Mãe foi muito complicado», confessa Paula Braga.
A Artémis intervém neste processo, facilitando o fluir dos sentimentos. Sandra Cunha explica que a prioridade é fazer com que as mulheres percebam que não têm culpa do que lhes aconteceu. «Enquanto acharem que são culpadas, é muito difícil trabalhar com elas. Só depois dessa fase é que podemos deixá-las vivenciar o processo de luto. O que nós fazemos é dar-lhes espaço para vivenciarem este luto, para depois trabalharmos a auto-estima», explica a psicóloga.
Um dos caminhos é a terapia de grupo. Paula admite que, no início, os momentos de partilha são «muito complicados». «É horrível quando se junta um grupo de meia dúzia de mulheres que vão iniciar a terapia. Parece que vão todas para a guilhotina. Passadas cinco ou seis sessões, já muito dificilmente choram quando falam do assunto e até já conseguem rir», conta Manuela Pontes.
Paula Braga salienta que as mulheres percebem facilmente que todo grupo está em sintonia, pelo que se criam laços de amizade, fundamentais para amenizar a dor. «A perda tem várias nuances. Nunca se esquece, mas ameniza-se. A dor passa a ser só uma recordação. Existe sempre uma melancolia daquilo que vivemos e do que poderia ter sido. Já não sofro por ter perdido os meus dois bebés, mas jamais vou esquecê-los», assegura Manuela Pontes.
O renascer da esperança
O desespero inicial desvanece-se e a vida continua. Manuela Pontes tem agora uma filha, chamada Vitória. Na Artémis, começou há um mês a terapia com um grupo de vítimas de aborto espontâneo ou de morte fetal que estão novamente grávidas. «Somos umas heroínas. Sofri muito, passei por uma fase muito complicada e ainda posso voltar a passar, mas cá estou. O que tiver que acontecer, acontecerá», revela Paula Braga.
Esta futura mamã diz que ficou «com muito medo» depois do que lhe aconteceu, mas nunca pôs a possibilidade de não voltar a engravidar. Quando soube que ia ter um filho ficou num turbilhão de emoções: chorava e ria ao mesmo tempo. O sexo do bebé era-lhe indiferente. «Depois de tudo aquilo pelo que passei, não tenho coragem de ter preferências», diz.
Apesar de tudo estar bem, a pressão é constante e a exigência para com as grávidas é muito grande. «Eu fico danada quando me dizem: “agora vê lá se tens cuidado”. Mas eu tive cuidado. Quando perdi o meu filho, perguntaram-me: “O que é que tu fizeste?” Absolutamente nada. Tive todos os cuidados que tinha de ter. As pessoas acham que quando se perde um bebé é porque nós fizemos alguma coisa, o que não é verdade», afirma Paula Braga. A presidente do Conselho Fiscal da Artémis sente que, se alguma coisa correr mal, as pessoas vão dizer: «pronto, lá fez ela outra vez asneira».
Manuela Pontes acrescenta que os conselhos — ditos com boas intenções — podem revelar-se muito destrutivos. «Os familiares de uma associada que teve três abortos espontâneos disseram-lhe: “Não continues a tentar que ainda te sai algum deficiente”. São frases ditas por alguém que nos quer bem, mas não é exactamente isso que queremos ouvir. O que queremos é sentir apoio e solidariedade porque muitas mulheres estão na mais profunda solidão no meio de uma multidão imensa», conta.
A raiva e a revolta são os sentimentos comuns a todas as associadas da Artémis quando se fala de aborto voluntário, de bebés abandonados ou de crianças maltratadas. Paula Braga explica: «Quando ouvia essas histórias, apetecia-me partir a televisão. Quando sabia que ia dar algo dos género, preferia não ouvir porque me custava muito. Porque é que essas mulheres fazem isso? Porquê?».
[Parte de uma reportagem publicada no Diário do Minho, em Fevereiro de 2006]
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