quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Livro ajuda a quebrar o silêncio sobre a perda gestacional



Lúcia Marcos perdeu a filha às 39 semanas de gravidez, por descolamento total da placenta. «A Marisa nasceu às 9h38 em morte aparente. Foi feita reanimação durante cerca de 10 minutos, ficou sedeada, entubada, levou transfusões de sangue... e acabou por falecer às 20h00», conta.

A mãe recorda que nada havia a fazer. «Após a reanimação, o coração batia e chegou a respirar sozinha. Mas algumas horas após, espasmos e convulsões tomaram conta do seu pequeno corpinho. Os neonatologistas vieram-nos perguntar se autorizávamos pararem as manobras de reanimação, ao que nós acedemos. Não quisemos fazer a autópsia. Os motivos da morte eram mais que evidentes», relata.

Lúcia Marcos não foi capaz de ver ou tocar na filha. Pediu à enfermeira-chefe para lhe vestir um babygrow a dizer “ma petite fleur”. Queria recordar-se dela «como se estivesse sempre num eterno jardim de flores, de pureza natural».

Foi este jardim que recriou na campa da filha, que se vê da sua casa de solteira. «Tantos anos vivi ali e nunca me incomodou estranha presença [o cemitério]. Longe de mim imaginar que uns anos mais tarde iria lá ter uma filha enterrada e com vista directa para o meu quarto... O meu anjo», explica.

«A primeira vez que fui ao cemitério conhecer a campa da Marisa foi quando ela faria um mês de idade, dia 23, véspera de Natal. Comprei umas flores artificiais para a enfeitar, uma picareta, umas jarras e um tapete verde para imitar a relva. Montei-lhe o seu pequeno jardim de flores; nem uma única pedra, não quero pedras! Ela está no seu jardim. E nesse jardim não morre jamais, mesmo que não seja regado, que não tenha sol, que apanhe vento. Estas flores há-de ter sempre a sua cor viva. Vou-as lavando de vez em quando e repondo na campa. Sei que o meu marido só foi lá uma única vez até agora, de mão dada comigo», refere.

O filho de Lúcia Marcos estranhou que a irmãzinha nunca mais chegasse a casa: «Lembro-me de ser confrontada com a pergunta do Guilherme: “Mamã, onde está a Marisa?” Não sabia o que responder e por momentos fiquei em silêncio. “Está na tua barriga?”. Aqui, respondi-lhe: “Não, meu amor, já não está na minha barriga”. “Onde está ela?”. “Oh, fofinho, a Marisa já não vem mais. Ficou a brincar com o Jesus e as estrelinhas do céu. Nunca mais mencionou o nome da Marisa. Aceitou a minha explicação».

Ao contrário do que se passa com Guilherme, esta mãe tem necessidade de falar da filha que perdeu. «Não suporto a indiferença dos outros. Há alturas em que as pessoas, inconscientemente é claro, me fazem parecer um ET, em constante observação. Hoje percebo que é mais fácil para mim falar da Marisa do que para os outros ouvir falar dela, da forma aberta com que o faço. Para mim, é evidente que tenho dois filhos: um na terra e outro no céu. Mas que são dois», afirma.

Quinze casos contados em livro

São casos como os de Lúcia Marcos que dão alma ao livro “Pacto de Silêncio – Maternidades Fugazes”, de Maria Manuela Pontes. Depois de uma edição de autor, a obra foi agora publicada pela Papiro Editora.

A presidente da Artémis – Associação de Apoio a Vítimas de Aborto Espontâneo refere que o livro foi escrito como «forma de homenagear as mamãs que perderam bebés e os próprios bebés», uma vez que as «histórias escritas perduram», bem como «quebrar o silêncio» em torno do aborto espontâneo e perda gestacional.

A obra está divida em três partes: a primeira reflecte as expectativas de Manuela Pontes sem relação à maternidade; a segunda reúne 15 testemunhos de perdas, que vão desde problemas de infertilidade até à morte na recta final da gravidez; e a terceira apresenta os contributos de Carla Barbêdo e Mário Sousa, profissionais de saúde com um olhar humano sobre esta problemática.

A autora explica que «para quebrar o silêncio é preciso apresentar histórias reais» de aborto espontâneo/morte fetal. Os casos que reuniu são «todos diferentes, mas todos iguais. São percursos diferentes, com intensidades diferentes, mas que incluem a perda».

Os objectivos estão a ser alcançados, a julgar pela reacção das pessoas. «Há quem escreva a dizer que não sabia que este processo era tão doloroso. Há mulheres que ficam contentes quando descobrem a existência da Artémis e há familiares de pessoas que sofreram perdas que querem saber mais sobre esta questão porque percebem que é um assunto que não pode ser ignorado», explica.

Manuela Pontes salienta que as pessoas que sofreram perdas revêem-se nos testemunhos que são relatadas, embora possam ter contornos diferentes. Histórias sofridas como a de Sandra de Almeida Marcos, que um dia acordou muito bem disposta, pois ia ouvir o coração da sua menina. Mas não chegou a ouvir. A Mónica tinha falecido às 37 semanas e meia de gestação «dentro da mãe que supostamente a deveria proteger de todos os males».

«Às 8h45 do dia 6 de Janeiro de 2006, Dia de Reis, a minha filha Mónica nasceu... Nasceu sem vida... Não chorou, não esperneou, nada... Só um silêncio intenso... Tinha 2,715 kg...», conta.

O diagnóstico foi morte súbita in útero. «A autópsia foi conclusiva, a menina estava saudável, o estudo que efectuaram ao cordão umbilical e à placenta vieram concluir que estava tudo bem; os exames que me fizeram posteriormente também vieram com bons resultados... Não existam motivos para a minha filha falecer», refere. E, no entanto, morreu. Perguntaram-lhe se a queria ver. Não, «não queria vê-la morta... Preferia imaginá-la viva».

Sandra de Almeida Marcos tem falado muito da filha. Recusa-se a que o «assunto seja tabu numa qualquer reunião de família». Não quero que a sua curta existência nada signifique... A Mónica foi alegria, um sonho bom que existiu para nós, logo tem de ser recordada com felicidade. Sei que esta dor nunca irá passar... Vai somente acalmar... Estou a aprender a viver com a eterna saudade».

[Publicado no Diário do Minho, a 14 de Junho de 2008]

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