sábado, 12 de julho de 2008

«É uma guerra para travar ao segundo»

Acompanhamento dos doentes é muito desgastante para a família

A família sofre com a luta contra o cancro, um inimigo alojado no interior do corpo. O acompanhamento permanente é muito desgastante, a ponto de só se aguentar quando se ama verdadeiramente.

Margarida (nome fictício) era uma mulher saudável, independente e com uma personalidade forte. Comia sopa e fruta, recusava hamburgers e frangos do aviário. Ia ao ginásio e à praia. Gostava de conduzir.

Em plena menopausa, aos 52 anos, os miomas que tinha nos ovários eram um problema controlado. Durante as férias na aldeia, no interior do Baixo Minho, começou a não conseguir apertar as calças, mas não valorizou o mal-estar. Até que um dia comeu ameixas e teve uma diarreia terrível, com sangue nas fezes. Estranhou porque nunca antes tinha tido problemas de intestinos.

Foi fazer exames. Disseram-lhe que era um pólipo, mas a carta fechada fez com que esta mulher habituada a lidar com médicos desconfiasse. Foi operada e ouviu os clínicos assegurarem-lhe que era um “tumorzinho”. Cortaram-lhe apenas uma parte do intestino e Margarida ficou feliz. Não queria andar com a “bolsinha” que exporia a sua doença. Fez quimioterapia. Pensava que ia ficar totalmente curada.

Depois, insistiu em ir trabalhar, mas sentiu dores muito fortes. Acabou por dar entrada no Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto. O tumor cólon-rectal tinha alastrado aos ovários. Apesar da angústia, a esperança mantinha-se. A operação foi adiada à espera de um médico que tinha ido aos EUA. A cirurgia, mesmo com o especialista, acabou por não ser a planeada. A doença estava com uma evolução galopante.

Por esta altura, o cancro de Margarida era também a principal preocupação da afilhada, Catarina (nome fictício), que se recusava a aceitar a evolução da patologia. Foi tirar satisfações com o médico, que friamente lhe tirou qualquer ilusão de possível cura. Chegou a agarrar-lhe o braço. Era insuportável ouvir que “a segunda mãe” tinha uma doença terrível, das piores, em avanço acelerado. Conteve-se a custo para não ser rude, mas nunca mais conseguiu olhá-lo nos olhos.

«Foi um golpe profundo, senti a dor da perda. Senti uma revolta contra tudo e contra todos. Deixa-se de acreditar em Deus, nos médicos, na vida, nas pessoas... Mas, ao mesmo tempo, precisava de acreditar em tudo e em todos. Senti que iria encontrar forças nalgum lado para mudar tudo. Há uma força que nos diz para continuar», relata Catarina.

«Luta contra o inimigo dentro de ti»

Ao todo, foram dois anos e meio de luta. Catarina começa a ficar cada vez mais emocionada. Os olhos claros humedecem e a pele da cara fica ainda mais branca. «É uma luta contra o inimigo que está dentro de ti. É uma guerra para travar ao segundo. É uma doença que muda tudo. Pensa-se em recorrer ao estrangeiro, mobilizam-se todos os contactos. Vai-se à procura de toda a informação possível, desde as enciclopédias até à Internet», afirma.

Aguenta-se, apesar da exaustão. Há momentos em que se perde o norte e se acaba a andar à deriva em zonas proibidas do IPO. Há alturas em que faltam as forças para subir as escadas. Há situações em que reconhecer os familiares mais próximos exige um esforço desmesurado. «Só se consegue estar do primeiro ao último momento se se gostar muito, muito, muito daquela pessoa. Caso contrário, é impossível aguentar. É nestas alturas que se vêem os verdadeiros sentimentos», conta. As palavras tornam-se desnecessárias. Pela cabeça passam mil interrogações. «Só podia ser maldição para ter acontecido a Margarida, que sempre teve tantos cuidados com a saúde», era o que pensava.

No horizonte continuava a esperança. «Tens de acreditar. Se achas que os médicos são falíveis, também são eles que têm a chave de tudo», refere. Procurou todos os caminhos, mas não foi por isso que passou a ir mais à missa. «Nunca fui à bruxa nem nada do género. Esta era uma questão médica. Não vamos ser estúpidos», afirma. Foi uma vez a Montariol à procura do xarope de aloé vera. O momento acabou por ser decisivo. Catarina sentia que «tinha de correr uma maratona, mas não tinha sapatilhas para continuar». Foi aí que um frade lhe disse que, quando uma casa está a arder, devemos tentar apagar as chamas, em vez de avançarmos para elas. E, de repente, a lucidez voltou.

«Faz-se tudo para amenizar o sofrimento»

A degradação física da madrinha era uma realidade. Catarina queria resguardar Margarida de tudo e de todos. A doença passou a ser vivida por um núcleo muito restrito de pessoas. Começaram a jogar um jogo com a doente, para que ela não desistisse. «Se vomita, diz-se que a comida está estragada. Se está cansada, a culpa é do estado do tempo. Se não há mais tratamentos, assegura-se que é apenas uma interrupção. Faz-se tudo para amenizar o sofrimento», conta.

Não havia vagas nas camas de retaguarda do Porto. Rumaram ao «hotel da morte» de Coimbra. É assim que chama àquela unidade de cuidados paliativos. A versão oficial é que iam de férias para a “cidade dos estudantes”. Margarida sofreu uma oclusão. A maior preocupação era, por essa altura, a sua qualidade de vida. Catarina tirou uma semana de férias. O trabalho era a sua salvação. A doença absorvia todos os segundos, todas as energias.

Só no último mês de vida é que Margarida se confrontou com a morte. Continuando a ser a mulher de armas que sempre foi, queria manter a autonomia possível, mesmo quando já era um «cadáver andante». Só meteu baixa quando não podia mesmo trabalhar. Só deixou de conduzir quando não podia mesmo conduzir. Só deixou de tomar banho quando não podia mesmo tomar banho. Só deixou de falar dois dias antes de morrer. Esperou o dia de aniversário da filha de uma médica amiga, ligou o telemóvel e deu-lhe os parabéns. Depois, entrou num sono profundo.

Catarina vinha de Coimbra quando os peregrinos se dirigiam para Fátima, para celebrar o 13 de Outubro. Pediu a Nossa Senhora que levasse a madrinha. Ninguém aguentava mais. Margarida morreu «no dia em que tinha de morrer». Catarina viveu «a grande experiência» da sua vida. Continua a chorar. Com lágrimas que lhe caem pelo rosto, mas sobretudo com a alma. Para ela, o cancro é um monstro. O pior inimigo. O inimigo que está dentro de nós.

Sem comentários: