sábado, 12 de julho de 2008

Filhos e dependência económica adiam ruptura do ciclo das agressões

Antónia (nome fictício) sentia-se totalmente dependente do marido que a agredia, tal como um ramo em relação à árvore. Durante muito tempo sofreu em silêncio, viu o olhar dos filhos a ficar cada vez mais triste e tentou suicidar-se. Um dia decidiu tomar as rédeas da sua vida e saiu de casa. Agora, faz contas para conseguir matar a fome, mas sente-se viva. De ramo passou a tronco. E os filhos voltaram a sorrir.

Esta santomense casou jovem. Durante os primeiros tempos de convivência com o marido viveu em permanente lua-de-mel com um homem «amoroso, carinhoso, companheiro». Mas depois tudo mudou. O homem de sonho deu lugar a uma pessoa que se exaltava à mínima coisa. Um objecto fora do sítio era motivo mais do que suficiente para uma cena. Com os ciúmes infundados, em Julho de 1998, a agressão física passou a acompanhar a violência psicológica. «Ai Jesus...», suspira.

Antónia amava-o muito e queria estar ao lado dele. Sentia-se sozinha em Portugal, longe da família e com dois filhos nos braços. «Tinha consciência de que ele me fazia mal, mas eu procurava pensar na parte boa para manter a família – ou melhor, aquilo que aparentava ser uma família – unida», conta.

Esta mulher «tinha esperança» que o João (nome fictício) mudasse. Acreditava quando ele serenava. Mas tudo acabava por voltar a ser turbulento. «Não podia falar com ninguém, não podia conviver, porque ele tinha medo que eu contasse a alguém. Vivia num meio muito fechado, isolada dos amigos», afirma.

Em desespero, tentou o suicídio. Queria desaparecer. Enquanto estava internada, uma amiga confrontou-a com o seu acto. Queria entender o que se estava a passar. Queria perceber o motivo da tristeza profunda e constante. Ela acabou por contar. O homem foi «chamado à razão». Antónia voltou para casa e ouviu o marido dizer: «Achas bem o que fizeste? Coitado do teu filho...».

A mulher descobriu «de maneira dolorosa» que o homem com quem vivia não era o homem que amava. «Deixei tudo para vir ter com ele e fiquei sozinha, sem amor e sem amigos», revela. As agressões eram uma constante. No hospital mantinha as mentiras, mesmo quando o médico lhe dizia que era impossível que o que ela dizia fosse verdade.

O ponto de ruptura deu-se no ano passado, quando João agrediu uma vizinha que se encontrava a falar com Antónia. Foi ao hospital e à Polícia. No dia seguinte, foi a vez dele apresentar queixa dela na esquadra. A mulher contactou a linha de emergência social e informou-se sobre o que tinha de fazer. Era chegado o tempo de pegar nos filhos e nalgumas coisas e de sair de casa. Durante três dias esteve num alojamento, depois deram-lhe dinheiro para um mês de renda. Estava na altura de pôr as suas asas à prova e voar sozinha.

«Nos primeiros tempos, a luta é muito complicada. Tem de se pensar muito bem para conseguir pagar a renda, a água, a luz. Quando se pensa em fazer a denúncia tem de se reflectir muito bem, porque às vezes as mulheres querem-se ver livres do problema e esquecem-se doutro que está a chegar: o das contas para pagar. Os apoios da Segurança Social tardam a chegar», adverte. Antónia ainda tentou ir a casa buscar mais coisas, mas João já tinha mudado a fechadura.

Esta jovem já pensou se não valeria a pena pôr de lado o orgulho e voltar para «a toca do lobo», como lhe chama, mas recusou a ideia porque lá em casa mora «o mesmo monstro» do qual fugiu. «Eu não tinha vida própria. Era um complemento dele, uma ramificação doutra vida, um ramo que não conseguia viver sem esse tronco. Agora tenho vida própria. Eu existo», afirma. Depois de conhecer o sabor da liberdade, recusa a possibilidade de «voltar para a prisão pelo próprio pé».

Antónia não consegue pensar só em si. Os meninos estão primeiro. O mais velho também foi vítima de agressões e o mais novo assistia ao que se passava em casa. «Os meus filhos tinham tudo, menos um sorriso. O mais velho nem conseguia olhar as pessoas nos olhos», diz, sublinhando que «não há nada mais gratificante» do que ver os miúdos felizes, apesar dos «meios limitados».

A refazer a vida, esta mulher pretende retomar o curso universitário que interrompeu, se conseguir arranjar dinheiro. O que se propõe é trabalhar, cuidar dos filhos e estudar. Sabe que não será fácil, mas está disposta a arriscar porque aprendeu que é capaz de algumas proezas reservadas às heroínas. «Estou feliz por ver os meus filhos felizes», assegura. O resto virá por acréscimo.


Obstáculos à denúncia

A “estória” de Antónia é reveladora das estratégias usadas pelos agressores para dificultarem a denúncia. Apesar da unanimidade acerca do aumento da intolerância em relação à violência doméstica, a verdade é que os filhos, a dependência económica, o isolamento social das vítimas que os agressores vão acentuando e as ameaças, muitas vezes de morte, tornam-se obstáculos que adiam a ruptura.

Eva Ferreira, coordenadora do Projecto Atena, salienta que uma parte considerável das vítimas que procuram os centros de informação e acompanhamento «não têm muitas qualificações» e possuem rendimentos reduzidos. «Algumas mulheres são vítimas de violência doméstica há vários anos, mas aguentam por causa dos filhos ou porque têm medo de não terem rendimentos para aguentar sozinhas, sobretudo quando têm filhos», acrescenta.

Teresa Sofia Silva, do Gabinete de Braga da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), tem uma experiência semelhante. Algumas mulheres chegam desesperadas em busca de alternativas, mas acabam por voltar para casa e para o agressor. «O ciclo da violência é assim mesmo. As mulheres acreditam que os companheiros vão mudar porque depois da agressão vem o pedido de desculpas e a fase de lua-de-mel. Posteriormente, vem novamente a agressão e um novo pedido de desculpa. As mulheres acreditam que é desta que eles se vão emendar», refere a responsável pela estrutura bracarense da APAV.

A técnica diz que se estas mulheres voltarem a pedir ajuda, recomeça-se o processo, com a apresentação das várias opções que se colocam. «A decisão é sempre da vítima», assegura.

A permanência em casa pode, no entanto, revelar-se perigosa, dado que basta que, um dia, um dos filhos se sinta compelido a defender a mãe e acabe ferido ou mesmo morto. Sem que haja qualquer premeditação, o pior pode acontecer. E aí, quem permitiu o arrastar da situação de violência pode transformar-se indirectamente no responsável pelo destino trágico de uma criança.

Sem comentários: