sábado, 12 de julho de 2008

Cancro já não é sinónimo de sentença de morte

A palavra ainda provoca terror. Os olhos baixam-se e o sobrolho franze-se quando se ouve falar em cancro. Quase todos têm um caso triste para contar, seja de um familiar, de um amigo ou de um conhecido. Mas também há inúmeros relatos de quem enfrentou este temível inimigo, venceu e continuou a viver. Esta doença é, cada vez mais, feita de esperança. Globalmente, há cura para metade dos casos e, ao contrário do que muitas vezes se pensa, em Portugal há praticamente os mesmos tratamentos que nos países tidos como de referência. Enquanto se continua a aguardar pela cura total, a história desta patologia faz-se a partir dos testemunhos de quem sobreviveu, de quem viu partir os seus entes queridos e de quem diariamente assiste médica e espiritualmente os doentes oncológicos. (Reportagem publicada no Diário do Minho em Março de 2008)



Gonçalo (nome fictício) tem 24 anos. As pequenas rugas que tem na cara tornam-se mais evidentes e as palavras menos fluentes quando começa a falar do linfoma que o tornou «eventualmente» numa pessoa «talvez um bocadinho mais calma e ponderada».

Nas férias de Verão de 2006 descobriu um gânglio abaixo do pescoço e ficou preocupado. Foi ao médico, que o mandou fazer uma ecografia e um raio-X. Teve consciência de que «poderia ser algo grave». Acabou por lhe ser retirado o gânglio para fazer o exame histológico. O jovem foi-se apercebendo aos poucos do que tinha, até pelo facto de possuir conhecimentos na área da saúde. Soube que tinha uma doença do foro oncológico sem que alguém lhe tivesse dito.

«Pensava em viver um dia de cada vez. Sem conhecer o resultado do exame não valia a pena pensar no que é que iria acontecer depois de conhecer o resultado. Isso seria sofrer por antecipação. É uma fase da vida em que não vale a pena fazer muitos planos. Todas as hipóteses estão em aberto e até termos a certeza absoluta da realidade não vale a pena estarmos a sofrer por antecipação», revela.

O mais difícil foi ultrapassar as três semanas entre a retirada do gânglio e o diagnóstico do tipo de neoplasia. Disso dependia ter uma perspectiva de vida de dois ou três anos ou uma esperança média muito aproximada à das outras pessoas. Continuou a ir às aulas, mas também foi passear. Quase não mudou os seus hábitos pessoais, apesar de «pensar muito leve e inconscientemente em todos os cenários». «Fiz uma vida normal», assegura.

Sempre encarou o problema de frente. Deteve-se «cinco segundos» a pensar na pergunta «porquê a mim?». «Não vale a pena perguntar porquê. É uma perda de tempo ocuparmo-nos com o que são as evidências. Eu tinha um problema e tinha de resolvê-lo e isso passava por ir ao médico, obter uma proposta terapêutica, cumprir o tratamento e aguardar», explica.

Tinha, afinal, «o mais brando» dos vários tipos de linfomas, o que foi um factor adicional de motivação para o tratamento. No entanto, admite que o tempo em que fez radioterapia e quimioterapia foi difícil, sobretudo porque o tratamento foi extenuante do ponto de vista físico. «A quimioterapia causa sintomas que são algo desagradáveis, mas com os quais ao longo dos tempo nos vamos habituando a lidar», conta.

Com os tratamentos veio «o estigma da queda do cabelo», como lhe chama. «É, obviamente, um factor adicional de sofrimento e de confronto diário com a nossa condição de doentes. Antes da queda do cabelo é mais fácil esquecermos a doença. Depois temos essa evidência cada vez que olhamos para o espelho. Ainda que possamos sentir náuseas e vómitos, não os vemos, não os temos perante os nossos olhos, que são um potente estimulador de emoções», admite.

Os que lhe estavam próximos reagiram pior do que ele. Gonçalo tinha «uma forma muito própria de brincar com a situação, o que num ou noutro momento chegou a ofender algumas pessoas». «Houve pessoas que desapareceram por uns tempos e que mandaram mensagens a pedir desculpa porque não tinham coragem para me encarar transfigurado pelos tratamentos altamente debilitantes», afirma.

As reacções fora do círculo mais próximo foram de compreensão. «O cancro é uma doença que ainda tem um enorme impacto social, por gerar a sensação de pena, mas também por não motivar juízos de valor que tantas vezes destroem a compaixão que devemos ter por todos os doentes. A sociedade organiza-se muito bem para apoiar as pessoas com cancro, quer através das condições nas unidades de saúde, quer da ajuda psicológica», declara.

Ao longo de nove meses passou pelo Hospital de São Marcos, em Braga, e pelo Instituto Português de Oncologia do Porto. Chorou três vezes. Agora, que «o prognóstico é excelente», elogia a forma como foi tratado. «Em Portugal existem excelentes condições para o tratamento do doente oncológico, o que contrasta com as condições às vezes deficientes para o tratamento de outros tipos de doenças», salienta.

Com uma pequena gargalhada algo forçada, define cancro como «uma doença semelhante a muitas outras, cuja imagem terrífica que a sociedade ainda lhe empresta é cada vez mais exagerada. Há doenças com consequências que são mais nefastas e os tratamentos mais incipientes, para as quais a sociedade ainda não está sensibilizada».

Portugal tem 99 por cento dos tratamentos doutros países


O oncologista do Hospital de S. Marcos Herlander Marques refere que «o cancro ainda é uma doença com um potencial de mortalidade elevado», mas na qual já se conseguem curar 50 por cento das pessoas. «Conseguimos elevadas taxas de cura utilizando a cirurgia, a quimioterapia, a radioterapia e mais recentemente alguns fármacos que actuam activando o sistema imunológico. Algumas doenças são curáveis quase a cem por cento e outras menos», explica.

O médico diz que «há a ideia errónea de que o cancro está a aumentar e de que está a crescer fruto da poluição, da má alimentação, quando isso pode contribuir apenas marginalmente para que se registem mais casos». «Mesmo que conseguíssemos fazer desaparecer todos os factores de risco relacionados com o cancro, ele continuava a aparecer. As doenças malignas têm vindo a aumentar em todo o mundo essencialmente devido ao envelhecimento da população», afirma.

O clínico salienta que os principais factores de risco são o envelhecimento e o tabagismo. Há algumas infecções, como a síndroma da imunodeficiência adquirida, mais conhecida por sida, que, ao diminuírem a imunidade, aumentam o risco de cancro. Outro grupo de factores prende-se com as doenças que obrigam ao transplante de órgãos: como as pessoas ficam a tomar imunosupressores, têm a imunidade baixa pelo que há maior risco de doenças oncológicas.

Em relação aos tratamentos, o oncologista declara que «99 por cento são semelhantes aos que se fazem em qualquer parte do mundo, quer na Europa, quer nos EUA». «Há uma pequena percentagem de tratamentos, que são novos e experimentais, que estão apenas a ser testados nos EUA e alguns países europeus. Esses são tratamentos em que não se sabe quais vão ser os resultados a longo prazo. Em termos de tratamento standard, fazemos tudo o que se faz nas outras partes do mundo», assegura.

No tocante às estruturas de saúde, diz que as condições têm vindo a melhorar significativamente ao longo dos últimos 20 anos, existindo uma rede oncológica que ainda continua a ser melhorada. «As expectativas das pessoas aumentaram, mas tem havido uma resposta à altura», afiança.

Referindo-se ao S. Marcos, sustenta que as condições de ambulatório são boas e que o internamento só poderá melhorar com as novas instalações. O número de casos de cancro que chegam a esta unidade tem aumentado, mas sem que isso signifique que a doença tem subido entre população. Este acréscimo dá-se porque o hospital é um centro de referência. Na área das doenças malignas do sangue, há cerca de 120 novos casos por ano, sendo que globalmente há uma cura na ordem dos 50 por cento.

Herlander Marques perspectiva que, nos próximos anos, vai ser preciso aumentar o número de oncologistas, para que seja possível manter a proximidade na relação com os doentes. «A quantidade de doentes por médico é tal que começa a faltar o tempo necessário para um diálogo profundo com os pacientes. E se o doente não esclarece as todas as suas dúvidas pode ficar angustiado», adianta.

Em seu entender, as pessoas que, em Portugal, trabalham na área da oncologia são «muito ligadas aos doentes, muito interessadas pelo seu bem-estar». «Se a determinado momento não conseguem aumentar a quantidade de vida, pelo menos melhoram a qualidade», frisa. Da mesma forma, também os doentes e as respectivas famílias acabam por ter uma ligação muito forte com os clínicos, porque se apercebem que tudo é feito por eles.

Segundo os indicadores de saúde por município apresentados no Anuário Estatístico da Região Norte de 2006, com dados relativos a 2005, a taxa de mortalidade por tumores malignos no Minho-Lima foi de 2,5 por cento, no Ave de 1,7 por cento e no Cávado de 1,6 por cento, com valores inferiores à taxa de mortalidade por doenças do aparelho respiratório, que surgem com, respectivamente, 4,4 por cento, 2,3 por cento e 2,2 por cento.

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